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Obrigação do Estado, SIM, cuidar dos idosos junto com a família

Viernes, 23 de Marzo de 2018
Políticas y Derechos

Porque a regulamentação da profissão de cuidador de pessoa idosa está engavetada no Senado e não é votada pelo plenário enquanto em países ricos, como a França, ela já existe há décadas? A vulnerabilidade das idosas e dos idosos brasileiros sem condições de pagar um agente cuidador no mercado privado é humilhante.

Por Léa Maria Aarão Reis

O governo francês enfrenta uma greve nacional, nesta terça-feira, (30/01/2018) dos profissionais que trabalham em estabelecimentos para idosos dependentes, conhecidos no país pela sigla Ehpad. Os trabalhadores da área denunciam a falta de meios materiais e de pessoal para garantir um atendimento digno e humano aos idosos. Os relatos de familiares e dos próprios funcionários dão a impressão que a França maltrata seus velhinhos.

Será mesmo? A notícia da Radio França Internacional (RFI), divulgada no começo deste ano, à primeira vista parecia cair  como uma bomba nos meios profissionais dos países que se ocupam das políticas de seguridade pública das populações que envelheceram.

Porque, como salienta o psicólogo, professor e pesquisador Daniel Groisman, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a França é um dos países que primeiro implantou uma política pública de cuidados aos seus idosos. ‘’Lá, a profissão de cuidadores dos mais velhos já está regulamentada há muitas décadas. A notícia aponta para uma greve por melhores condições de trabalho, o que se traduz também em uma reivindicação por melhores condições para o cuidado, já que uma coisa está diretamente relacionada com a outra. ‘’

Enquanto isso, no Brasil, nós entramos em 2018 ainda aguardando uma votação, no Senado, que não se sabe quando nem se irá ocorrer, regulando a profissão de cuidador de pessoa idosa no país. “Embora o Projeto de Lei da Câmara de novembro de 2016 tenha sido aprovado recentemente na Comissão de Assuntos Sociais do Senado (já tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados), houve, no final do ano passado, um requerimento do governo para que a matéria seja apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, ’’observa Groisman, que é também Doutor em Serviço Social.

Motivos desta solicitação? Não foram divulgados.

‘’A minha impressão, ’’ afirma o especialista em cuidado da pessoa idosa e  políticas públicas para o envelhecimento, ‘’é que a intenção é retardar a aprovação dessa matéria já que, historicamente, o governo tem colocado resistências à criação de novas profissões -  como a de cuidador, por exemplo - sob o pretexto de que a criação de uma nova profissão pode aumentar os gastos públicos. ’’

No contraponto, quando se percebe o longo e sofrido percurso que ainda devemos percorrer para chegar a uma situação digna de atenção às nossas idosas e idosos, registre-se que a França, no fim de 2016, contava com 728 mil residentes em casas de repouso. A média de idade dos hóspedes, 85 anos. E a média de cuidadores nessas instituições, seis para cada dez pacientes.

Mas os diretores dos Ephad (as casas que recebem idosos) reivindicam que essa relação aumente de oito para dez, enquanto os sindicatos da categoria reivindicavam um cuidador para cada idoso.

Além do mais, no modelo exemplar francês, em que o estado não deixa à família exclusivamente a responsabilidade pelo cuidado de seus velhos, e considerando que falamos do sexto país mais rico do mundo, sem os vertiginosos abismos da desigualdade social e econômica com que convivemos no Brasil, há mais uma série de outros serviços públicos prestados às pessoas idosas ou que necessitam de cuidados. Eles variam desde ajudas para a manutenção da casa (arrumação, comida etc.) à prestação de cuidados em domicílio, entre eles.

Groisman ainda observa, reforçando o movimento de contramão social e de regressão que o Brasil pós-golpe atravessa atualmente, também nessa área dos cuidados e atenção à população mais velha: ‘’ Tal modelo reflete a percepção de que o risco de uma pessoa necessitar de cuidados, ao longo do seu curso de vida, deve ser incorporado aos sistemas de seguridade social. ’’

Ao mesmo tempo, ele lembra, ‘’ diversos países que implantaram sistemas mais robustos de promoção do bem estar social vêm empreendendo ajustes em maior ou menor grau, para a sustentabilidade dessas políticas, seja motivados pelo viés neoliberal dos seus governantes ou pelo aumento dos custos em função do envelhecimento populacional.’’

É o caso da greve na França. ‘’Ela se refere a um contingente de trabalhadores empregados pelo Estado ou por meio de organizações não governamentais, que estão reivindicando melhores condições de trabalho.’’

‘’Quando li essa notícia,’’ ele prossegue, ‘’ logo pensei em como seria improvável um movimento semelhante ocorrer no Brasil, ao menos no contexto atual, já que, diferentemente dos países mais desenvolvidos, nós não possuímos uma política pública que reconheça os cuidados como um direito. Ou seja: não temos serviços de prestação de cuidados universalizados e com um contingente expressivo de trabalhadores - cuidadores inseridos, capazes de prestar apoios para as pessoas que moram sozinhas e para as famílias que cuidam dos seus idosos.’’

‘’No Brasil, tradicionalmente, a responsabilidade pelos cuidados recai sobre os indivíduos e suas famílias, que devem procurar por soluções no mercado privado. Isso faz com que cuidar (e receber os cuidados necessários) seja uma tarefa mais difícil, de alto custo e acesso desigual, fazendo com que aqueles que não possuem condições de contratar esse tipo de serviço fiquem em situação de grande vulnerabilidade na sua velhice.’’

Na França, os cuidadores em greve relataram que têm o tempo cronometrado para executar os cuidados básicos: "Vinte minutos por dia por paciente", "três minutos para administrar um medicamento", "cinco minutos para trocar um curativo" e "quinze para um banho completo".

Uma senhora francesa, de 76 anos, no entanto, que, diariamente, visita a mãe centenária em uma casa Ehpad para lhe dar as refeições, declarou à RFI que não critica o pessoal, "insuficiente e esgotado de realizar tarefas tão ingratas. Eles não têm o tempo necessário para acompanhar minha mãe.’’

É o modelo pósneoliberal em plena execução na sua indiferença pelo bem-estar social e pela pessoa humana. Por exemplo: os cuidadores grevistas denunciavam, na RFI, o serviço calculado de forma muito apertada com o objetivo de gerar o menor custo possível, o que deixa os velhinhos sem a merecida atenção. Chegou a ser denunciado que, em alguns estabelecimentos, a ducha, teoricamente para ser utilizada uma vez por semana e alternada com a higiene diária no leito, apenas é administrada a cada 15 dias ou três semanas, por falta de tempo do pessoal.

‘’Ao mesmo tempo - e esse é um argumento que já utilizei em alguns debates - às vezes o barato sai caro!’’ rebate o professor Daniel Groisman. ‘’Nossa população está envelhecendo, tem necessidades crescentes de cuidado, e os próprios cuidadores necessitam também de mais segurança, acesso à qualificação profissional e melhores condições de trabalho.’’

‘’Adiar a regulamentação dessa profissão ou fingir que não é necessária uma maior incorporação desses trabalhadores às políticas do SUS e do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) pode produzir uma série de consequências para as condições de vida e proteção à dignidade da população idosa ou que necessita de cuidados, impactando também nos gastos públicos.’’ 

No que se refere ao texto do Projeto de Lei que o plenário do Senado não vota, há nele pontos positivos. “Mas também alguns problemas que poderiam ser corrigidos. No final do ano passado, o Encontro dos Cuidadores do Estado do Rio de Janeiro, na UERJ e organizado pela Associação dos Cuidadores do Estado do Rio de Janeiro (ACIERJ) produziu uma carta endereçada aos parlamentares, solicitando alguns ajustes no texto do PL. Esses ajustes, entretanto, não foram efetuados até o momento, ’’ lamenta Groisman. 

A França conta com um sistema de casas para idosos públicas, privadas, outras mantidas por associações.  Os preços variam segundo a região do país. A média nacional é de 1 950 euros - cerca de 7 650 reais. Em uma clínica privada, a mensalidade salta para 15 600 reais. Quando a aposentadoria do idoso não é suficiente para cobrir esta despesa, não é raro os herdeiros venderem a habitação onde a pessoa vivia para pagar os custos de internação.

Já no Brasil, a quase totalidade das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) é privada - seja de natureza filantrópica ou não. Possivelmente a oferta é menor do que a demanda, sobretudo para a população de baixa renda.

‘’Acho também,’’ analisa Daniel Groisman, ‘’que a fiscalização a essas instituições provavelmente é mais eficaz nos grandes centros, ainda que com limitações, já que o próprio modelo de fiscalização a partir de uma check-list terá sempre as suas limitações. Traçando um paralelo, imaginemos um restaurante inspecionado pela vigilância sanitária. A inspeção vai atestar as boas práticas no manuseio dos alimentos, mas isso não significa que a comida oferecida será gostosa, já que isso é um valor subjetivo. Da mesma forma, uma fiscalização numa ILPI pode verificar se a instituição cumpre com os requisitos estabelecidos na legislação, mas terá mais dificuldades para captar aspectos subjetivos das relações de cuidado, como a humanização, o respeito à individualidade, o nível de liberdade proporcionado para os residentes etc. ’’  

Pesquisas realizadas pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em  passado recente, indicaram que as soluções de solidariedade para o cuidado ao idoso são mais frequentes nas famílias de baixa renda. ‘’Mas é preciso tomar cuidado para não acreditar que a solidariedade é uma solução para todos os problemas,’’ diz Groisman. ‘’A solidariedade é um elemento que favorece o cuidado. Mas, além disso, as famílias que cuidam dos seus idosos - sobretudo as de baixa renda - necessitam receber apoios para prestar esses cuidados. Tais apoios devem envolver diversos elementos: orientação e informações sobre como cuidar, visita de profissionais aos domicílios, acesso a serviços quando necessário, além de outros tipos de apoio, como, por exemplo, financeiro. Imagina um parente, em casa, trabalhando como cuidador? Será que essa pessoa não deveria receber algum tipo de ajuda, para cobrir custos?’’

Outro ponto importante para o qual o professor e pesquisador da Fiocruz chama a atenção é a sobrecarga dos cuidadores familiares. ‘’Em alguns países que possuem políticas de cuidado já implantadas, é comum que eles possam receber uma ajuda de algumas horas ou dias na semana, como na França, por exemplo. Assim, o cuidador familiar não fica esgotado ou até adoece por causa da sobrecarga de trabalho; e pode ter um tempo para tratar de assuntos seus, pessoais ou do interesse da família.’’   

Com este quadro preocupante – ou desalentador, visto as atuais circunstâncias da vida na era pós-golpe, no Brasil, fica a pergunta: a ação Estratégia de Saúde da Família continua sendo praticada mesmo com os cortes de gastos e teto imposto pelo governo?

‘’Sim, mas ela vem sofrendo modificações Em relação ao financiamento, que não está mais priorizando a atenção básica. E em relação à composição das equipes. Por exemplo, até recentemente, cada equipe deveria contar com um determinado número mínimo de profissionais. Isso foi alterado. Foi usado o argumento de permitir que as equipes se adequassem às necessidades de cada área. Mas, na prática, o que vem ocorrendo é que, sem um patamar mínimo estabelecido para funcionamento, muitos trabalhadores estão sendo demitidos. E os quantitativos de profissionais estão sendo reduzidos.’’

E você acredita, Daniel, que possam prosperar, no Brasil, redes de moradias de amigos que envelheceram, e são da mesma geração e se reúnem para morar e viver, juntos, e em grupos? Em Kopenhagen, há décadas, foram construídos bairros inteiros especiais para idosos.

O modelo fica para um futuro imprevisível. ‘’É uma ideia que pode vir a prosperar nesse futuro.’’

Em tempo: O curso para cuidadores da Escola Politécnica abrirá inscrições em agosto próximo. O curso é gratuito e tem carga horária de 200 horas, incluindo estágio supervisionado.

Fuente: Carta Maior - 14/03/2018
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Idades-da-Vida/Obrigacao-do-Estado-SIM-cuidar-dos-idosos-junto-com-a-familia/13/39595